sábado, 27 de agosto de 2011

Carta de Flávio Cavalcanti



Petrópolis, 25 de outubro de 1975

Meu neto,

Pelo que você já me disse com o seu sotaque de anjo, percebo que você me considera uma criança grandona e desajeitada, e me acha - mesmo assim - o seu melhor companheiro de brinquedos. Pena é que tenhamos tão pouco tempo para brincar: tão pouco porque só sei brincar de passado, e você só sabe brincar de futuro. E ainda estarei brincando de recordação quando você começar a brincar de esperança.

Mas, antes que termine o nosso recreio juntos - o melhor que eu já tive e o primeiro que você tem - , antes que eu me torne apenas um retrato na parede, uma referência de meu genro, ou quem sabe até uma lágrima de minha filha, quero lhe dizer uma coisa que considero muito importante para os seus momentos de dúvida. Sim, porque eles virão e todos eles serão preciosos. Quero lhe dizer, meu neto, que Vale a Pena.

Vale a pena crescer e estudar. Vale a pena conhecer pessoas, ter namoradas, sofrer ingratidões, chorar algumas decepções e - a despeito de tudo isto (ou por causa de tudo isto) - ir renovando todos os dias a sua fé na bondade essencial da criatura humana e o seu deslumbramento diante da vida. Vale a pena verificar que não há trabalho que não traga a sua recompensa; que não há livro que não traga ensinamento; que os amigos têm mais para dar que os inimigos para tirar; que, se formos bons observadores, aprenderemos tanto com a obra do sábio quanto com a vida do ignorante. Vale a pena ver que toda amargura nos deixa reflexão, toda tristeza nos deixa a experiência e toda alegria nos enche a alma de luz.

Vale a pena casar e ter filhos. Filhos que nos escravizam com o seu amor e nos concedem, com certa tolerância, o direito de renunciar em seu nome. Filhos que, ao crescerem um pouco, já discutem conosco, acham que sabem mais do que nós (e não raro sabem mesmo) e nós aprendemos com eles.

Vale a pena viver nestes assombrosos tempos modernos em que os milagres acontecem ao virar de um botão; em que se pode telefonar da terra para a lua; lançar sondas espaciais, máquinas pensantes à fronteira de outros mundos. E descobrir na humildade que toda essa maravilha tecnológica não consegue, entretanto, atrasar ou adiantar, um segundo sequer, a chegada da primavera.

Vale a pena viver, mesmo com todas as limitações a que o ser humano está sujeito, quando lembramos que o surdo vê a luz do sol; que o cego ouve a música das coisas; que o mendigo sonha com as estrelas; que não precisamos sequer de todos os sentidos para participar do esplendor da Criação.

Vale a pena, mesmo sabendo-se que você vai ver as coisas que eu nunca vi, assim como eu vejo coisas que meu pai não viu, e meu pai viu coisas que meu avô não viu.

Vale a pena, certamente - o saber acumulado dos cientistas e especialistas que revelarão coisas que a mim não foram reveladas. Pode ser que você conheça seres vindos de outros planetas, o que para mim é teoria e especulação, assim como o rádio e a televisão foram teoria e especulação para os meus avós já falecidos.

Vale a pena, mesmo quando você descobrir que tudo isto que lhe estou tentando ensinar é de pouca valia, porque a teoria não substitui a prática e cada um tem de aprender por si mesmo que o fogo queima, que o vinagre amarga, que o espinho fere e que o pessimismo não resolve rigorosamente nada.

Vale a pena, até mesmo envelhecer como eu e ter um neto como você, que me devolveu a infância.

Vale a pena, ainda que eu parta cedo e a sua lembrança de mim se torne vaga. Mas, quando outros disserem coisas boas de seus avós, quero que você diga de mim simplesmente isto:
- Meu avô foi aquele que me disse que valia a pena . . . E não é que ele tinha razão?